o que é uma letra?, enfurno o olho nuns por dentros, preciso recompor o fio da ficção que me trouxe, tem olho o Torvelinho, um que tudo vê, rasga e acende, uma luz lhe inunda e torna oco, animal oco, rodam ratazanas, gambás e bicos de biguás em volta das asas, uma luz lhe inunda e esvazia a cara, há sempre onde cair e onde se cai é também o que ampara. eu queria correr por dentro do que tivesse corpo, o toque, o desfolhamento, a gente nunca sabe nada do ver. como estar próximo?, como de fato TOCAR?
eu queria me desmanchar em micropedacinhos de matéria viva.
O QUE É QUE VOCÊ TÁ SUSPIRANTE ASSIM? nas alturas. parece um doido. nas alturas das águas. é que volta e meia eu lembro do Torvelinho, você sabe. eu sei, eu sinto o cheiro daqui, o aí de dentro da sua cabeça, miolo e fúria, cipó retorcido e sílaba. eu sei. mas movimento de rotação em espiral, os pequenos voos, um tom urgentíssimo, você deveria começar é pela vida do riacho pra cá, das bandas que são nossas, olha só a gente, o Olho-vazado que se tornou um que teve o coração transpassado, trejeito quase enternecido, uma cascatinha descendo livrada no peito montanhoso. um coração que vê. que vê mais ou menos, ver não se parece tanto com isso, não é como se houvesse imagem que a minha capacidade de ver conseguisse ordenar e pôr no lugar de coisa vista. o meu olho vaza, às vezes deixo que seque ao sol.
de todo modo não é ainda a vez dele, do Torvelinho, do animal oco cujo corpo é um esconderijo submarino. você tem razão, fica de mau tom começar por esses assuntos de funduras, o charco devorando o mundo. quero antes. antes que a gente se enfie. de desfiar o fio que guia pelo labirinto. Olho-vazado me faço e surjo com as palavras do abismo e não é exatamente bonita a paisagem, sempre assim profunda rica inquisidora lírica ou não tão só, porque é cisterna a paisagem e frio e lodo e nojo, sobretudo nojo esse que não me larga, imagine você ser siamês e ter que dividir até a bosta do cu com outro sujeitinho que também é você, não na cabeça, mas na carcaça e nuns por dentros, vesícula fígado pulmões e até na inutilidade suprema do apêndice, o cara quer até o que você tem de mais inútil e ainda bem que eu não tenho é nada, que cedo compreendi: a vida é um avesso, além de vesícula fígado etc etc tem também aqueles alinhavados pegajosos todos, os intestinos que são de um e que são de dois, a cobra que morde a própria cauda com maravilha ou desdém e sobremodo eriça as escamas numa vertigem de espelhos. surjo com as palavras do abismo e ora aqui ora acolá mudo o nome, pareço outro, um lá-e-cá me preenche, um lá-e-cá recheia a carne gordurosa do bicho morto. escancaro a fera, parece que a cara em mim não gruda, mas desgrudada da minha cara tenho outra, ele é que tem, ramificação no nosso pescoço, o Olho-ostra, esse que sou eu e que não sou, esse que é bicho de estremadura feito eu, eu que aconteço e sigo impossível de VER, “mas o que é que significa VER?” é o que dizia num livro a dedicatória que um homem escreveu a uma mulher, escreveu também que a amava muito, e eu roubo a dedicatória, roubo-a agora no instante em que me lembro dela e não no primeiro instante, o livro em mãos, a boca um pouco seca de estalo de espanto, ou eu que vejo e não me atenho, que capto e não fixo, que quando fixo já me esqueço e dou o salto, este salto e o seguinte para que venham outros, cindido de tempo e chão da queda, eu tive um sonho dos homens antes da palavra escrita, de que se encharcasse e se instaurasse neles um sem nome, como uma peste a um corpo esquecido sobre o qual o tempo poderá deitar sombra ou poeira, os documentos inúteis e timbrados marca d’água assinaturas rubricas ter um nome pra ter onde pôr a casa, pôr a casa num nome que existe segundo um documento, e não segundo a um reconhecer-se a si como chamado, ter um documento pra pôr ordem na casa. eu sei lá, eu fico pensando que responder ao chamado não pode ser determinado por chegar no emprego às 8, largar às 18, papel pautado, engarguelado até o talo. proatividade e migalha apodrecem sempre para dentro, o primeiro homem que leu sanções na placa, que detonou a bomba cuja destruição é frágil. eu sou um caga-lume, no meu olho tem espaços abertos, córregos. uma claridade frouxa. nunca me vi.
Olho-ostra está parido, como recompor o fio de um labirinto cuja entrada não existe e cuja saída se faz o próprio caminho?, Olho-ostra tenho sido, escrevo os meus refúgios todos num tempo de esperas e pressentimentos, a ficção é o labirinto, meticuloso afio as barbatanas, sou um peixe subterrâneo e aguardo um desastre nuclear, o cataclismo que fará voar a km/h supersônicos as gravatas, as cores dos semáforos, as antenas parabólicas dos edifícios e das casas, os vidros e os ponteiros rígidos dos relógios, as chinelas que por ventura uma mulher calce e as botas que por ventura um homem lamba, os dentes de leite dos meninos e os dentes permanentes dos adultos, a bomba que é um cálice e que entorna sobre a terra a sua grande mancha. fico no bueiro feito pertencesse a uma espécie específica de barata, caixas de esgoto tubos de queda d’água lixões jazigos fossas ralos curtumes, meus lugares de dizer que não fui pego, só os organismos mais simples e mais lentos conseguem estar no mundo e ir com ele, de modo que uma barata pode viver sem cabeça durante algumas semanas e que suas células por se reproduzirem com vagar possuem mais tempo para solucionar danos fatais causados pela radiação. mas aí é que tá. e se você tá errado? e caso essa bomba tal qual você imagina não chegar? você se sente muito especial por prescrever os caminhos, por ser esse sujeitinho insuportável, sempre pra dentro. você só entra em você. e fica aí, entocado. você acha bonito nunca ter jeito de puxar um assunto. que merda. sei que entre o abismo e a casa não há cerca parede qualquer vestígio de divisão, é por isso que há o umacoisasó, que são o mesmo o abismo e a casa ou o abismo é a casa e a casa talvez seja o quintal porque a casa onde eu caía, o quintal onde eu ralava os joelhos que são meus e que ao dizê-los meus digo também que são seus: ambos sentíamos a dor sem que ela se dividisse pelo número de cabeças, em duas, a dor intacta cobrava o seu preço e era a minha e a sua dor distintas e uma mesma, o abismo da infância tinha heras nos muros, eu pegava as sombras pelas pontas com o desajeito com que pegava os avessos e seus brilhos miúdos de armarinho. é arejado o abismo, nele sufoca-se na ventania, uns atravessamentos na garganta, na cabeça os cabelos num maremoto cruzando por cima, um pé de acerola, uma muretinha baixa de pedras irregulares dividindo o jardim suspenso das lembranças que não temos, cururus inchados dando seus passeios pesados e noturnos, os quartos com chão de madeira muito escura, uma muralha de pedra e escaladas na sala de estar. somos filhos, temos pai se tem pai uma pergunta que dorme escarra caga e morre? o fio do labirinto está descascado e é elétrico. o fio da ficção que me trouxe é uma raiz que flutua.
houve o sopro, o sopro na boca para que aprenda a falar e responda, para que ganhe Germe e empreenda a grande viagem, o início, a travessia de animal recheado e sacro, o verdadeiro nascimento, e há o umacoisasó, o abismo que habitamos, a casa ou abismo que nos lança ao mundo que sonhamos acima de qualquer suspeita. estou há uma hora do fundo falso, digo não caio mais em armadilhas mas vou ao trabalho, são fios invisíveis, só cago quando volto, ligo o despertador que toca um minuto ou dois depois que acordo, o bicho morto recheado e muito bem adestrado, sinto uma falta a medida em que sou solapado ou me solapo a ponto de tentar, e muito mal, tecer o labirinto quando estou completamente extenuado e não me resta mais nada, nenhuma opção ou vontade, quando estou exausto demais até para dormir. a linguagem é uma larva pontiaguda, me enoja. peixe de chifre. peixe tem corpo aquoso, molenguento assim moldável pelo meio ou porque é meio, não sei se uma continuação que difere, água transmutada ou se água mesmo. se tudo não é uma coisa só. uma hora fica. o labirinto que teço não sei se tem corpo de pergunta, se é início ou continuação de algo que não se sabe e, abruptamente, chega. uma hora foi. mas sei que interrompe uma linha, explode uma esfera: a de passar tanto tempo a desempenhar papeis de si mesmo, menino memorizar os conteúdos todos na escola com a finalidade de tirar a nota máxima na prova, memorizar o que precisa ser feito, otimizar sempre otimizar desde sempre, pigarros e tapinhas nas costas, estar em dia com os deveres para só então cobrar os direitos, eis um verdadeiro cidadão, só seguir em ordem todas as memorizações como se estivesse desempenhando papel trivial de ser a si próprio.
Olho-vazado não retém e é por isso que abarca, parece que só vai passando, fazendo pequenas inaugurações, há nele uns sustos. o abismo e a casa, esses dois que de longe se avizinham, dão ar de minha familiaridade com a vertigem: não há coragem em salvar-se pela doença, é assim também com essa ficção, com esse estar à beira, com as palavras que detono nela, palavras que desde muito conheço e no entanto, compondo o que sobra da explosão, não sei quais são. é por isso que são familiares. para de querer ter as palavras, escreve com as palavras que você não tem. risca com ausência. esse entalo seco diante das formas mais plenas de covardia, da perversidade estourada em quatro tiros na cabeça de uma mulher negra que difere e questiona, e agora esse rio enxuto que fica correndo dentro da gente. a gente fica sem ter onde caber. fala o que não cabe. o que é o possível? e o irreal, essa coisa que não se sabe?
e o Torvelinho, o Coisa Impossível, esse que deu medula e osso num sopro e em contrapartida foi soprado, que tem um corpinho denso de vento, aqui ele chega, cai telhado esburacado de casa, desmonta árvore de caule fino, qualquer caco mal pendurado etc etc, o olhão escarafunchado cintilante que tudo vê, lampejo e punhal escarafunchando. tão bonito ser ambientado, sem espanto de haver um mundo, de estar em alguma porção dele mas o que é ele?, sem revirar o cascalho com ar de algum brilho gravíssimo escondido.
o Coisa Impossível.
que se estivesse morto estaria aqui pelas bandas da gente, sem levantar o pó, sem arremessar a poucos metros coisa miúda com alguma graça. duro. frio. fixo. mas porque vive diverge, e então impossibilita: se afasta e não sabemos onde é que ele está aqui-agora, nem sabemos o que seria aqui-agora, a substância de que é feito, claro que depois da nossa insuflada vocação de ser a imagem malajambrada e semelhança, um chicote a golpear os cornos, um pequeno sorriso arriando da cara, e a gente aqui que se confie em governo igreja casamento INSS. aí vira um não tem quem aguente.
fazer tomar corpo. nutrimo-nos um do outro. e quem é que não? não é como se porque fôssemos dois irmãos grudados. não nisso. chang é quem fala, eng enquanto isso pendula. é outra forma como nos chamam aqui, chang e eng, do riacho pra cá. e embora a gente não tenha a roupa de grande atração da noite. a roupa ausente tem estrelas bordadas no alto dos dois bolsos folotes que estão na altura dos peitos, um fundo azul anil, um fio dourado que passa pelas bordas das estrelas e culmina numa lua minguante imensa na barriga a despejar um ocaso. recém-paridos, marcávamos a inauguração de um mal augúrio que por desforra ou graça os pássaros esqueceram de voar e cantar. mas ainda não era esse o nascimento, a tentação. o nosso corpo tem dois extremos, os dois deliram, mas o entrelaçamento é o êxtase, é o ponto exato no qual habita a nossa reciprocidade. Olho-vazado, Olho-ostra, para além do nojo, da sujidade da víscera: o cerne, para além disso de estar sempre acoplado ao irmão, essa intimidade que a gente tem, que há entre quem se fecha e quem se abre, que no fundo joga o mesmo corpo na experiência, no espaço, no nosso interior comum. chang abarca tudo com o olhar, de repente o nosso corpo não coincide, um entalhe no meu olho, sigo vendo sem me ater, o meu olho é um buraco que suga, mas é possível não esquecer que ressoamos, pequeninos frutos do contágio que somos, as formas de abrir no mundo e, somente por essa fenda, inaugurar o desvio, fazer uma festa a tudo que deriva e que rompe, corda que se puxa firmemente nos dois extremos, o dorso aclarado do mistério.
estamos os dois na beira da caverna. daqui vejo os cipós retorcidos como a escuridão mais escura: labirintos que se emaranham. o lugar de um, o lugar do outro, o lugar de um só. o lugar de um só, o lugar de um, o lugar do outro. perto da entrada e penso: quando a ponto de cair na verdade, salvar-se pela doença. não esturricar em cima do mistério uma ânsia de resolver, mas num sopro de distração sonhar em esclarecê-lo, o sono leve cuja falta faz ao homem, o desejo viscoso, a dúvida que sucede toda curiosidade. que as coisas são menos estes dois pontos em que o eixo da Terra corta a superfície terrestre e mais o fosso que aí está, no meio. é nesse em suspenso que nem é norte e nem é sul, é nesse entre que reside a graduação. nela, o inalcançável. nessa laminha secreta, argila e água por onde sobre se assentam os tijolos. que o homem, a se distinguir do cosmos, tem propósito. e o cosmos, a anteceder o homem, tem inércia, dizia o livro. a simplicidade é dura e traz saúde. a complexidade é molinha assim, fio de haste invisível, e traz doença. aqui nós, um que se funde, outro que se reparte. um ambos. aqui nós, e um estar a beira que é repugnante e delicado. um passo e adentramos a totalidade obscura da noite, a fusão daquele que vê com a esfera mais íntima, o desencarrilho do labirinto. e então o fim, o fim de todas as palavras daqui, o fim de todas as palavras que são, ao modelo do que o Torvelinho faz voejar desajeitado, um pequeno nascimento proveniente da lacuna.
eu fico à porta, você adentra. você faz a condução e transmite para fora aquilo que vê, eu dou formas e voltas a qualquer coisa de indescritível. a gente é isso, audácia e reserva. e o inevitável desfere a pesados golpes sua parcela de intransponível – o Um é cheio de dobras. e é tudo. é vasto. eu aguço os ouvidos, você amestra os ossos. você empreende o passo. nosso jeito de verdadeiramente nascer. desfolho em verbo esse indescritível, eu o encerro e nisto é que acendo um lastro, como quem acorda de um sonho. rodam ratazanas, gambás e bicos de biguás em volta das asas do pássaro implume.